segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CARNAVAIS ( A GUERRA NO MEIO DO MUNDO)



Eu vi vocês vivendo
no paraíso de balanços vermelhos
de gramas verdes eu vi vocês
vivendo no paraíso de comidas abundantes
de piscinas refrescantes de quadras sem mercados acontecendo nas esquinas
tiros de serpentina eu vi.

Vocês defendendo pessoas como eu
vocês defendendo pessoas que me matariam
eu vi vocês consumindo monstros e
jogando tomates em anjos.
Seus frutos vivem no paraíso e anjos no inferno queimam
asas tolhidas tigelas partidas e olhares distantes.
Nesse mundo cercado de cercas vivas
mortas eletricidades correm por entre moscas mortas e seus muros celestiais
estão pintados com o sangue de nossas vidas.

Armas eu vi vocês incitando contra mim
quando pedi um prato de fubá
Canhões e Matadeiras por entre as favelas
exércitos pisando os cemitérios dos meus irmãos
barcaças invadindo as matas e cortando o sertão
serão vocês minha criação?
ou eu vi vocês descendo do paraíso
atirando tiros imprecisos
na noite de dia
do fogo do vulcão
o anel da criação
queimou o sangue dos ímpios
e os atirou por entre precipícios
do alienígena mundo esquecido
só por não cobrarmos o preço do pão

Por entre canudos aspira o céu a fumaça que queima
as matas as feiras as casas as freiras os aleijados
as crianças indefesas
e na psicodelia e na bebedeira
de cacetetes e machados
soldados fardados correm das pedras arremessadas
das caveiras anunciadas
das facas dos cangaceiros
que cortam o ventre do demônio céu
regando com seu sangue e sua surpresa
a serra da catingueira
o cais da maldição
em uma vida sem agonia
sem seus muros e seus vigias
em que eu possa pescar meu peixe
sem ter que vender meu corpo e meu coração

E cai a luz da companheira
refletida nos lagos vermelhos de destruição
e seus muros antes pichados
gritam por entre tintas pela absolvição
dos anjos que foram enjaulados
por serem apenas pacíficos e calmos
em face a ventania da sorte
ao pesadelo das vidas contidas
pela morte e pelo não
pela negativa de perdão ao irmão prejudicado
pelo medo da diferença que mostrou a cada dia
que o padrão para se pular em uma piscina
para cirandar em uma grama verde na colina
é estar trancado e protegido por demônios armados
que são pagos por algumas famílias
que não gostariam de compartilhar a luz do dia
com seus irmãos desafortunados

Eu vi vocês levantando um dia
e vendo os muros desmoronados
e aquele cuspe aquela esmola aquele tiro aquela bota
aquele incêndio planejado
aquele estupro aquele ocaso
que por acaso era de filhas da terra
que por acaso a bala atravessou as costas de um anjo de caderno e sapatos
te prendem em um pesadelo que não mais podes comprar
E vi sua tijela de cereal quebrar para alimentar
a fome dos que vagam pelados

Eu vi vocês balançando os pés sobre o buraco da cordilheira
Dançando ouvindo a música do mar
e o círculo de balas e pedras
não pode deter a espera
de um signo iluminado
vocês em gramas verdes eu vi
construindo o encanto e saudando o pranto dos pássaros
que de alegria toam sem cansaço
a música de uma vida sem mestres e espantalhos
sem camponeses mortos e espancados
o amor na periferia

Eu vi vocês vivendo
no paraíso de balanços vermelhos
de gramas verdes eu vi vocês
vivendo no paraíso de comidas abundantes
de piscinas refrescantes de quadras sem mercados acontecendo nas esquinas
tiros de serpentina eu vi.


segunda-feira, 30 de julho de 2018

SE ESTIVESSE




Se estivesse aqui

pedra do reino

luz entre as janelas

a paz nas favelas

sossego no peito

Se estivesse aqui



Cetim que acaricia a pele

claridade de nossa casa

a lebre que tanto percorreu a estrada

danças de roda das crianças descalças nas calçadas

Alço voo em sete braçadas

Se estivesse aqui

As curvas de minha estrada



Sinais de fumaça

pintadas lajes e escritas pedras

guitarras e bandolins

Sinais se estivesse aqui

o café esquentado na varanda

azuis rosas laranjas

frutas na quitanda

sonhos e barcaças

zarpando para as luzes nas estradas

Se estivesse aqui



Reflexos

perplexas na água

minhas mãos mal lavadas

agonia e vazio

e com os passos passarinho anunciando

a batida de minhas asas

para me aprofundar no rio

e passar

como a lua passa

chuvas passadas



janela da alma me encara

e o buraco no chão acende a chama

penetrando na imensidão

quartzos e diamantes

sóis

estantes

encaro e no fundo do túnel

veria sinais de fumaça

zarpando para as luzes nas estradas

Se estivesse aqui

sexta-feira, 20 de julho de 2018

ODE AO ECLIPSE




Nas rédeas do castelo

submerso em pensamentos

acalora o sentimento

de finalmente estar aqui

Após tanto fugir



das noites infinitas

que nunca se dissipariam

observo as luzes

que corriam contra mim

mas não me viam



Gira à Lua das ruas

Girassóis sonoros já giraram

Girei



Dos eclipses totais

Medos terrenos

Dos eclipse lunares

Noites sangrentas

desesperos



O trago o gole o roubo

a raiva o soco a tapa

as espadas os dragões e os santos

meteoros sobre a noite estrelada



trânsitos vazios transitei

cortes profundos rasguei

para cores profundas ceguei

Até notar que lá no céu

Gira a Lua



Girei

quarta-feira, 18 de julho de 2018

SÍNTESE (A ALVORADA)

Tudo cru
e meus sonhos queimados com fermento
açúcares falsos e diabetes derradeiras
falta de ar
mais um menino jogado à asma e ao sereno
sereno tento
mas do alto da desatenção
o desengano me faz querer voar de encontro ao vento

E quanto ao vento
parece que ele me sopra pra longe de mim
e toda minha vida passou voando
como um pássaro tentando
quebrar as grades da gaiola
e quando rompem-se as correntes
as asas e as patas
as dores e as mágoas
te aprisionam ainda mais
que as masmorras e as escolas

E quanto às asas
sempre disseram para sempre podá-las
para que então eu aprendesse como deveria usá-las
E quanto às patas
sujas de barro e atrofiadas
quando eu mesmo me disse como amputá-las e suturá-las
E quanto às mágoas
Ilusões válidas e inadequadas
ressentimentos comumente associados aos arrependimentos e as dores
Quanto as dores
em seus caminhos infinitos
sangue e lágrimas
carcaças
cemitérios
medalhas
transformar esses venenos em água
ou acabar sucumbindo
À morte contra a vida.
SÍNTESE (A AURORA) 








Vielas vazias
saltitam sentimentos
lamentos
o nojo dos desejos
faz tornar-se desatento
copos vazios antes cheios
e além de tudo
a fuga do tempo
vícios e virtudes
queimando rapidamente
a eternidade do tempo
as folhas das memórias inflamam
mas as cinzas não se perdem
na duração do tempo
e morando nesse tempo

Contemplo a imensidão
no abismo dos bares e templos
A escuridão reluz a luz
o dourado ouro então em meu corpo
manchado com as penúrias e os desgostos
pode então me refletir
e me despir desta invisível e inseparável
cápsula do tempo

Na trilha do vale da morte
o sorriso ressuscita a vida
sem negativo para a negatividade
surge a positividade
essa é a sua sorte, se puder
Na trilha do vale da morte
corre então
meu eu pula ao mar
e se jogando nas ondas da existência
surfa-se nas harmonias profanas da alegria
da Aurora,
neste dia, nesta hora. 






quinta-feira, 12 de julho de 2018

ASCENSÃO 





Caído, os farrapos da asa partida espalham-se ao meu redor, assim como o rasgado cetim das minhas vestes expondo as profundas chagas resultadas do contato corporal com as raízes espinhosas de ancestrais árvores que rodeiam o fétido riacho que corta esta maldita terra esquecida. O ardor das chagas pouco se compara à dor nos cegos olhos e às visões dos ideais inatingíveis, e enquanto levantam-se os joelhos moídos que antes adormeciam deitados na cama de pregos formada pelas podres folhas mortas, sinto os humanos e ébrios sentidos tentarem reorganizar-se após o tombo celestial.


O imemorial som das harpas agora parecem um turbilhão ensurdecedor do silêncio na mais escura hora das terras infernais. De fato, nenhuma vivalma se atreveria a cruzar esses longos e abandonados corredores esquecidos, onde o fogo do inferno parece atraente ante o totalitário vazio destas galerias. Nenhuma curva – uma polegada e um pé em nada se diferem quando a distância é infinita.


Os pensamentos no figo dourado retornam, misturados à embriaguez da expulsão e a euforia da revolta contra a ordem. Como eram claros aqueles dias de glória em que a vitória seria possível – como cheiravam bem as ambrósias e as margaridas, como tocavam com suavidade aqueles profundos tão distantes mas sempre próximos olhares divinos de amor, sinalizados por silenciosos sinos monotônicos. Transitando entre a alegria do momento junto ao abismo dourado e o pesar de sua impossibilidade, adentram meus pés em uma pequena e medieval vila demoníaca.


Obscuros vultos perversos só conseguem entrar pela minha percepção pelas periferias dos meus sentidos. Vestidos em trapos, escuros e claros, observam-me rapidamente e arremessam suas portas antes entreabertas contra o mundo. A normal reação quando demônios veem anjos invadindo seu bom e velho lar. Tentando balbuciar palavras de amistosidade, a língua mal acostumada se embola e apenas bêbados murmúrios e doentes gemidos se fazem ouvir entre o batuque da ancestral tribo lunar e o choque dos portais nas frágeis paredes dos casebres.


Neste lugar em decomposição, minha antes limpa áurea torna-me um ímpio lobisomem vagante e abandonado, ao livre talante de todos. Queria ser Ícaro, mas minhas asas já restam derretidas na desilusão, e as ceras vulcânicas feriram-me marcando toda a casca com eternas e ondulares cicatrizes. Caminho assim acompanhado de olhares misteriosos e invisíveis por este labirinto, entreolhando-me por entre os robustos ramos de argila, em busca do Minotauro. O lugar é ameaçador, e sinto que só não fui destroçado por cães canibais porque a podridão e a infâmia são as melhores armaduras contra animais psicóticos. Exalo álcool, perdição e divindade, pareço-me sonhos, alegrias e desastres.


Avisto uma distante e familiar árvore na saída da vila. Memórias, cheiros e choros me levam a crer que já chupei do sumo de alguns frutos que destes galhos caíram. Alguns levaram-me a comunhão, outros a devastação e muitos a lugar algum: a não ser aqui.
No alto, o mais suculento fruto está rodeado de todos os outros – e aparentemente iguais – caminhos. Me apressando em direção ao colosso do destino, visualizo uma curva, um oásis de indecisão nesta terra sem escolha.


Estou ao pé das infinitas bifurcações. Minhas mãos suaves aguentarão o contato com o quebradiço tronco? Meus pés suportarão o peso do meu corpo contra a gravidade? A acácia rósea suportará as toneladas da medrosa passividade? 


O figo dourado – não sei se ele vive ou se morreu, ou se escolheu outro caminho neste gigantesco labirinto – se encobre com as densas flores dos medos que atravesso ao me pendurar nos galhos. Meus medos ou seus medos?

Ascenderei ou Cairei?



quarta-feira, 11 de julho de 2018

CICLOS 






Besouros voem para fora das narinas
Gavetas vazias do nada fechem-se
Enterrados atrevam-se a espalhar-se
Os gametas para o ovário da terra
e a negra fuligem dissipe-se
e se contraem os canais nas marinas
fechando-se nas bolhas e acendendo-se
os castiçais

Flama presa novamente ao fio
alimentando-se novamente da cera
ladeiras e cortiços
parabrisas sonhos e maneiras
A cinza volta a cada quarta-feira
e espalhando a chama pelo forrar da cabeceira
fechem-se os livros e acendam-se
os castiçais

Pássaros pousam nas orelhas
azuis anéis em suas patas recolhem
e voam ao norte na direção do planeta
diamantes que caem do céu no sertão
vidas enchentes verdejares
cirandas cantigas e tambores trovoem
a prece das crianças e seus amores acendendo
os castiçais


INFINITOS SÓ(I)S



Por entre molduras, o gordo e velho Sol, 250 pés acima da minha cabeça, dispara raios dourados inatingíveis que emanam de sua coroa de espinhos dourados. O calor que fervilha do bule de chá na cozinha da enfermaria faz as glândulas do dorso expelirem lágrimas por entre os poros que compõe a esburacada muralha negra do meu corpo.

A luminosidade branca da lâmpada fluorescente machuca a íris, e o suor vem para refrigerar a aridez que a mesma pintura de sempre causou nas minhas lentes acostumadas a admirar os astros mais distantes nos confins do espaço-tempo, em suas órbitas neurais pelas redes cósmicas.

O frio das hélices barulhentas queima as mãos com os 45º graus do meio dia, e a sombra da diminuta cela torna-se o refúgio de uma oliveira ou olaia, com os mesmos galhos e cordas convidativas que seduziram Judas, me protegendo do céu aberto acima das planícies artificiais incrustadas entre azulejos e mármores resplandecentes e quebrados.

A artéria, que reside na ponta de uma agulha conectada a um líquido azul faz-me sentir a insolação outrora tão prazerosa, em que pedaços da minha carne ardiam por dolorosos dias após prazerosos momentos à beira-mar dos gigantescos e salgados rios onde estrelas do mar nasciam e explodiam e cavalos-marinhos corriam livres pelos arados do reino do regente desconhecido.

Longos comprimidos descem minha garganta e a sensação de escassez de água me faz retornar as longas caminhadas junto aos escravos e a Moisés. Abrem-se os mares vermelhos da minha garganta para a passagem das tábuas da racionalidade e da estabilidade emocional, e meu esôfago floreia com a ânsia de vômito ao observar os meus iguais serem devorados por urubus no meio desta terra homogênea devastada.

A mão toca a maçaneta e recua ante a queimadura do ferro fervido, restando marcada pela marca do pecado junto a pulseira de identificação da normal anormalidade que me torna um singular semelhante aos outros anormais.

No pátio, os olhos se dirigem ao chão de estrelas. Sou louco, palhaço das perdidas ilusões, por ver 1,2,3,5,1597,2584 sóis arremessando seus raios por todas as direções em minha direção. Ponho meus escuros óculos de grau.


sexta-feira, 29 de junho de 2018

TORNADO





O branco nunca se enamorara pelo negro, assim como o sol jamais olhou pra lua entre a infinidades de corpos sagrados brilhantes na malha negra da manta de Deus. Em meus joelhos deitou-se, e com o punhal arranquei suas vísceras róseas banhando-me no mel da vida que corria sobre os rios e coloria de verde os matagais que cruzavam os longos desertos.

Tempestade. Um automóvel derrapando em uma curva acentuada à 150… 200 quilômetros por hora invadiu a calmaria do sublime e arremessou-a contra o muro branco que serpenteava o fora da via. De seus mananciais correram cachoeiras vertiginosas, e dos ventos friccionados explodiam faíscas que eletrocutavam todas as partículas de alegrias e as dividiam em infinitas dores eternas. No fundo imemorial o horror se expandia com a força de uma vingança e do rancor sutil que cobria toda a individualidade recalcada, refúgio e masmorra da barca onde a essência recobria a existência.

Arrancando todas as árvores e as enviando para o céu, a inundação lamacenta invadia todos os resíduos do que antes eram as residências dos justos, e o paraíso dos belos foi engolido pelo coração do tornado sem objetivo. Mentindo para si mesmo, só restava vagar destruindo os alheios Jardins assim como os sopros interiores tinham apagado os castelos de areia de uma infância distante, de um inexistente amor juvenil e de uma poesia que passou como um relâmpago pela consciência e se descarregou em uma árvore queimada pelo pesar e pela rotina.

O desejo era de tornar-se uma leve brisa que transitaria pelas lentidões das várzeas, pelos poros do universo o infinito de únicas possibilidades que conduziriam às velocidades inimagináveis. Tornar-me beleza: O sonho que de modo algum atingiria… O sonho que me levaria a assassinar o desejo. Letras de existências mentirosas, de uma sinfonia assassina secreta que surgiu da decomposição do corpo luminoso em contato com as trevas abismais.

Não pude me salvar, então te matei. Enterrada em milhares de pedaços, restam soterrados seus restos mortais em um cemitério indigente no fundo da consciência. Suas vestes incineradas em um forno em que o pão transmutado fermentava-se são cinzas queimando pelo caminho e seus cabelos serviram como cortinas das janelas da capela onde todos os dias os sinos badalam em memória aos sonhos mutilados que atravessaram o campo minado acreditando que a explosão poderia ser contida. Tragam de volta os bons e velhos dias…




ANOITECE




O rugido da máquina de ar-condicionado meneia as silhuetas das baias vazias cor de marfim com a fúria de um leopardo faminto em busca de qualquer presa comestível na savana de carpetes cinzas e cadeiras móveis. É o anoitecer.

As luzes sempre acesas durante a regência do sol gradativamente aparentam ser ofuscadas pela escuridão de um céu enevoado entrecortado pela sutileza da luz refletida no espelho lunar e pelas cintilantes estrelas vermelhas e amarelas que cruzam com violência os canais da metrópole, farfalhando toda água empoçada pela transitória chuva de veraneio tão comum ao cair da primavera no território da savana.

As gramas que crescem entre os concretos das calçadas são podadas por sentinelas vestidos de azul com lâminas giratórias, e o cheiro da vida e dos sonhos ceifados espalham-se por todo o ar moribundo impregnado do óleo diesel queimado pelos grandes aviões que transportam os pássaros silvestres para suas ocas localizadas nas vilas mais distantes do continente.

Hienas transitam entre os safáris em busca de frutos vulneráveis e pequenas lebres esfarrapadas tentam saltar nas portas dos veículos estelares que a levarão para galáxias negadas aos pequenos roedores sujos que residem nos resíduos dos gigantes que, à noite, apagam-se e dormem silenciosos depois de um longo e cansativo dia de burocracia.

Os bandolins do retorno ao lar tocam uma caótica música que mistura cansaço e alegria, e a corrida ao refúgio distante faz o solo tremer com os batuques de uma marcha marcial desorganizada, como a batida de retirada da companhia militar derrotada em que a individualidade é tanto recuperada no desespero quanto perdida no medo dos caçadores selvagens canibais que empalam suas vítimas e digerem seus miolos em uma sopa xamânica fumegante.

Executivos permanecem nos prédios que arranham o tecido do céu divino. Deus não teve chance contra as inúmeras torres de babel, e perdeu toda a capacidade de se comunicar com o negro rebanho que agora transita perdido sobre ordens desconexas dos anjos engravatados.

O rugido chega aos ouvidos. O medo de olhar para trás e encontrar um espelho é pior do que o medo de olhar para o lado direito e ser encarado pelo lago em que Narciso conheceu seu verdadeiro amor. Pouso a batina negra nas costas que me sustentam e fecho a bíblia negra dos velhos códigos que guia toda a produtividade da selvageria.

O bacamarte que segue em riste enquanto ocorre a aterrissagem da viagem da cabeça do gigante ao solo de concreto podado esta carregado e pronto para tecer um rombo no tecido de qualquer fantasma que transite na masmorra escura da ponte que atravessa o rio em que cadáveres puxam os pés dos desavisados para a eles se juntarem no festim infernal do submundo.

Atravessando as portas transparentes, com medo me apresso e, na rachadura da irregular calçada, todo o meu ser perde o controle e o mundo me parece transitar em ângulos antes nunca percebidos. Baixo se torna cima, esquerda se torna direita, e vejo que de um simples tropeçar nenhuma dessas definições tem sentido por si sem um farol que o ilumine.

O sangue que escorre da ferida recém-nascida jorra como uma cachoeira, e seus caminhos traçam novas veias sobre meu braço, caminhos nunca antes desbravados pelos insetos que me atacam durante o descansar noturno. O sangue cai e pinta um pequeno pedaço de grama não aparada pelos ceifadores, e os olhos esverdeados do mundo pela primeira vez me encararam com empatia. É o anoitecer.

quarta-feira, 6 de junho de 2018


RUÍDOS



Daqui escuto tudo. Do centro do quarto, as grossas paredes negras manchadas de lodo e mofo conservam o abafado frio aconchegante no qual flutuo tal qual um feto boia jogado ao mar vermelho. Dentro desta cápsula viajante do tempo, sinto-me em um não-lugar. O som do silêncio emudece o turbilhão fervilhante das ondas do oceano exterior que teimam em se chocar contra o casco do navio à deriva. 

As ondas estáticas e cinzas sem direção trazem aos ouvidos sombras de um noticiário matinal, uma receita auditiva que mescla o desejo do contato colorido do toque de um arco-íris com o cheiro incolor das lamas saídas de um vulcão obscuro que expeliu todo o gelo capaz de pôr os cabelos do planeta em chamas.

 Atravessando as finas paredes, o canto dos pássaros verdes planando junto ao vento em um céu azul distante se fundem com os gritos inaudíveis dos barqueiros apressados do porto... o odor dos vendedores de peixes anunciando sua viva mercadoria perfumada em frascos, das baratas tintilando entre frutas podres que as crianças esfarrapadas tentam coletar quando não estão pedindo moedas para os apressados camponeses que tentam chegar ao seu destino além-mar cruza com uma velocidade incalculável pelas badaladas dos ponteiros temporais.

 Os barcos barulhentos – Plam! Plam! – dançando e escorregando sob suas negras manchas oleosas têm dificuldade em atravessar a parede de corais que pululam com a vida de milhares de micro-organismos imperceptíveis. 

Sobre Eles, um caranguejo caminha pela teia em busca de pequeninas e apetitosas algas, e o estrondo de seu andar se funde com a cantiga medieval que atravessa os muros transparentes de uma escola juvenil de música onde sanfonas e flautas pintam o som com o violeta-anil rasante de uma melodia ardente e calma. 

A rosa que atraiu a abelha com seu odor harmônico grita um gemido de dor quando pisoteada pela roda de madeira cor de cravo arrastada por cavalos chicoteados que trotam em uma marcha constante – um, dois, um, dois – enquanto um pesado saco machuca a terra com um impacto que o rasga por completo, despejando batatas sobre o marrom do chão de terra batida misturada com o piche mal conservado. 

Murmúrios de menestréis suados cruzando as perigosas florestas áridas ressoam junto aos cheiros de princesas bandidas que vagam sob um céu roxeado cintilante e cheio de vida, e as águas que jorram quando o trem seguindo o vento do norte corta as artérias espalhando toda a terra escurecida e revelando o virgem som rubro do líquido expelido pelos motores da locomotiva. 

Daqui vejo tudo. Abro as janelas e a torrente de cheiros quase me ensurdece. Acima do arco-íris o ouro jorra entre meu corpo e os aromas de frutas prateadas caindo em um chão que nunca chega não são diferentes dos perfumes das harmônicas tocadas no longínquo e sempre presente cais. O silêncio e o Eu – um, dois, um, dois, um milhão – viajamos tanto que já esquecemos quem somos.