quinta-feira, 12 de julho de 2018

ASCENSÃO 





Caído, os farrapos da asa partida espalham-se ao meu redor, assim como o rasgado cetim das minhas vestes expondo as profundas chagas resultadas do contato corporal com as raízes espinhosas de ancestrais árvores que rodeiam o fétido riacho que corta esta maldita terra esquecida. O ardor das chagas pouco se compara à dor nos cegos olhos e às visões dos ideais inatingíveis, e enquanto levantam-se os joelhos moídos que antes adormeciam deitados na cama de pregos formada pelas podres folhas mortas, sinto os humanos e ébrios sentidos tentarem reorganizar-se após o tombo celestial.


O imemorial som das harpas agora parecem um turbilhão ensurdecedor do silêncio na mais escura hora das terras infernais. De fato, nenhuma vivalma se atreveria a cruzar esses longos e abandonados corredores esquecidos, onde o fogo do inferno parece atraente ante o totalitário vazio destas galerias. Nenhuma curva – uma polegada e um pé em nada se diferem quando a distância é infinita.


Os pensamentos no figo dourado retornam, misturados à embriaguez da expulsão e a euforia da revolta contra a ordem. Como eram claros aqueles dias de glória em que a vitória seria possível – como cheiravam bem as ambrósias e as margaridas, como tocavam com suavidade aqueles profundos tão distantes mas sempre próximos olhares divinos de amor, sinalizados por silenciosos sinos monotônicos. Transitando entre a alegria do momento junto ao abismo dourado e o pesar de sua impossibilidade, adentram meus pés em uma pequena e medieval vila demoníaca.


Obscuros vultos perversos só conseguem entrar pela minha percepção pelas periferias dos meus sentidos. Vestidos em trapos, escuros e claros, observam-me rapidamente e arremessam suas portas antes entreabertas contra o mundo. A normal reação quando demônios veem anjos invadindo seu bom e velho lar. Tentando balbuciar palavras de amistosidade, a língua mal acostumada se embola e apenas bêbados murmúrios e doentes gemidos se fazem ouvir entre o batuque da ancestral tribo lunar e o choque dos portais nas frágeis paredes dos casebres.


Neste lugar em decomposição, minha antes limpa áurea torna-me um ímpio lobisomem vagante e abandonado, ao livre talante de todos. Queria ser Ícaro, mas minhas asas já restam derretidas na desilusão, e as ceras vulcânicas feriram-me marcando toda a casca com eternas e ondulares cicatrizes. Caminho assim acompanhado de olhares misteriosos e invisíveis por este labirinto, entreolhando-me por entre os robustos ramos de argila, em busca do Minotauro. O lugar é ameaçador, e sinto que só não fui destroçado por cães canibais porque a podridão e a infâmia são as melhores armaduras contra animais psicóticos. Exalo álcool, perdição e divindade, pareço-me sonhos, alegrias e desastres.


Avisto uma distante e familiar árvore na saída da vila. Memórias, cheiros e choros me levam a crer que já chupei do sumo de alguns frutos que destes galhos caíram. Alguns levaram-me a comunhão, outros a devastação e muitos a lugar algum: a não ser aqui.
No alto, o mais suculento fruto está rodeado de todos os outros – e aparentemente iguais – caminhos. Me apressando em direção ao colosso do destino, visualizo uma curva, um oásis de indecisão nesta terra sem escolha.


Estou ao pé das infinitas bifurcações. Minhas mãos suaves aguentarão o contato com o quebradiço tronco? Meus pés suportarão o peso do meu corpo contra a gravidade? A acácia rósea suportará as toneladas da medrosa passividade? 


O figo dourado – não sei se ele vive ou se morreu, ou se escolheu outro caminho neste gigantesco labirinto – se encobre com as densas flores dos medos que atravesso ao me pendurar nos galhos. Meus medos ou seus medos?

Ascenderei ou Cairei?



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