ANOITECE
O
rugido da máquina de ar-condicionado meneia as silhuetas das baias
vazias cor de marfim com a fúria de um leopardo faminto em busca de
qualquer presa comestível na savana de carpetes cinzas e cadeiras
móveis. É o anoitecer.
As luzes sempre acesas durante a regência do sol gradativamente aparentam ser ofuscadas pela
escuridão de um céu enevoado entrecortado pela sutileza da luz
refletida no espelho lunar e pelas cintilantes estrelas vermelhas e
amarelas que cruzam com violência os canais da metrópole,
farfalhando toda água empoçada pela transitória chuva de veraneio
tão comum ao cair da primavera no território da savana.
As gramas que crescem entre os
concretos das calçadas são podadas por sentinelas vestidos de azul
com lâminas giratórias, e o cheiro da vida e dos sonhos ceifados
espalham-se por todo o ar moribundo impregnado do óleo diesel
queimado pelos grandes aviões que transportam os pássaros
silvestres para suas ocas localizadas nas vilas mais distantes do
continente.
Hienas transitam entre os
safáris em busca de frutos vulneráveis e pequenas lebres
esfarrapadas tentam saltar nas portas dos veículos estelares que a
levarão para galáxias negadas aos pequenos roedores sujos que
residem nos resíduos dos gigantes que, à noite, apagam-se e dormem
silenciosos depois de um longo e cansativo dia de burocracia.
Os bandolins do retorno ao lar
tocam uma caótica música que mistura cansaço e alegria, e a
corrida ao refúgio distante faz o solo tremer com os batuques de uma
marcha marcial desorganizada, como a batida de retirada da companhia
militar derrotada em que a individualidade é tanto recuperada no
desespero quanto perdida no medo dos caçadores selvagens canibais
que empalam suas vítimas e digerem seus miolos em uma sopa xamânica
fumegante.
Executivos permanecem nos
prédios que arranham o tecido do céu divino. Deus não teve chance
contra as inúmeras torres de babel, e perdeu toda a capacidade de se
comunicar com o negro rebanho que agora transita perdido sobre ordens
desconexas dos anjos engravatados.
O rugido chega aos ouvidos. O
medo de olhar para trás e encontrar um espelho é pior do que o medo
de olhar para o lado direito e ser encarado pelo lago em que Narciso
conheceu seu verdadeiro amor. Pouso a batina negra nas costas que me
sustentam e fecho a bíblia negra dos velhos códigos que guia toda a
produtividade da selvageria.
O bacamarte que segue em riste
enquanto ocorre a aterrissagem da viagem da cabeça do gigante ao
solo de concreto podado esta carregado e pronto para tecer um rombo
no tecido de qualquer fantasma que transite na masmorra escura da
ponte que atravessa o rio em que cadáveres puxam os pés dos
desavisados para a eles se juntarem no festim infernal do submundo.
Atravessando as portas
transparentes, com medo me apresso e, na rachadura da irregular
calçada, todo o meu ser perde o controle e o mundo me parece
transitar em ângulos antes nunca percebidos. Baixo se torna cima,
esquerda se torna direita, e vejo que de um simples tropeçar nenhuma
dessas definições tem sentido por si sem um farol que o ilumine.
O sangue que escorre da ferida
recém-nascida jorra como uma cachoeira, e seus caminhos traçam
novas veias sobre meu braço, caminhos nunca antes desbravados pelos
insetos que me atacam durante o descansar noturno. O sangue cai e
pinta um pequeno pedaço de grama não aparada pelos ceifadores, e os
olhos esverdeados do mundo pela primeira vez me encararam com
empatia. É o anoitecer.


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