ASCENSÃO
Caído,
os farrapos da asa partida espalham-se ao meu redor, assim como o
rasgado cetim das minhas vestes expondo as profundas chagas
resultadas do contato corporal com as raízes espinhosas de
ancestrais árvores que rodeiam o fétido riacho que corta esta
maldita terra esquecida. O ardor das chagas pouco se compara à dor
nos cegos olhos e às visões dos ideais inatingíveis, e enquanto
levantam-se os joelhos moídos que antes adormeciam deitados na cama de pregos formada pelas podres
folhas mortas, sinto os humanos e ébrios sentidos tentarem
reorganizar-se após o tombo celestial.
O
imemorial som das harpas agora parecem um turbilhão ensurdecedor do
silêncio na mais escura hora das terras infernais. De fato, nenhuma
vivalma se atreveria a cruzar esses longos e abandonados corredores
esquecidos, onde o fogo do inferno parece atraente ante o totalitário
vazio destas galerias. Nenhuma curva – uma polegada e um pé em
nada se diferem quando a distância é infinita.
Os
pensamentos no figo dourado retornam, misturados à embriaguez da
expulsão e a euforia da revolta contra a ordem. Como eram claros
aqueles dias de glória em que a vitória seria possível – como
cheiravam bem as ambrósias e as margaridas, como tocavam com
suavidade aqueles profundos tão distantes mas sempre próximos
olhares divinos de amor, sinalizados por silenciosos sinos
monotônicos. Transitando entre a alegria do momento junto ao abismo
dourado e o pesar de sua impossibilidade, adentram meus pés em uma
pequena e medieval vila demoníaca.
Obscuros
vultos perversos só conseguem entrar pela minha percepção pelas
periferias dos meus sentidos. Vestidos em trapos, escuros e claros,
observam-me rapidamente e arremessam suas portas antes entreabertas
contra o mundo. A normal reação quando demônios veem anjos
invadindo seu bom e velho lar. Tentando balbuciar palavras de
amistosidade, a língua mal acostumada se embola e apenas bêbados
murmúrios e doentes gemidos se fazem ouvir entre o batuque da
ancestral tribo lunar e o choque dos portais nas frágeis paredes dos
casebres.
Neste
lugar em decomposição, minha antes limpa áurea torna-me um ímpio
lobisomem vagante e abandonado, ao livre talante de todos. Queria ser
Ícaro, mas minhas asas já restam derretidas na desilusão, e as
ceras vulcânicas feriram-me marcando toda a casca com eternas e ondulares
cicatrizes. Caminho assim acompanhado de olhares misteriosos e
invisíveis por este labirinto, entreolhando-me por entre os robustos
ramos de argila, em busca do Minotauro. O lugar é ameaçador, e
sinto que só não fui destroçado por cães canibais porque a
podridão e a infâmia são as melhores armaduras contra animais
psicóticos. Exalo álcool, perdição e divindade, pareço-me sonhos,
alegrias e desastres.
Avisto
uma distante e familiar árvore na saída da vila. Memórias, cheiros
e choros me levam a crer que já chupei do sumo de alguns frutos que
destes galhos caíram. Alguns levaram-me a comunhão, outros a
devastação e muitos a lugar algum: a não ser aqui.
No alto, o mais suculento fruto
está rodeado de todos os outros – e aparentemente iguais –
caminhos. Me apressando em direção ao colosso do destino, visualizo
uma curva, um oásis de indecisão nesta terra sem escolha.
Estou
ao pé das infinitas bifurcações. Minhas mãos suaves aguentarão o
contato com o quebradiço tronco? Meus pés suportarão o peso do meu
corpo contra a gravidade? A acácia rósea suportará as toneladas da medrosa passividade?
O
figo dourado – não sei se ele vive ou se morreu, ou se escolheu
outro caminho neste gigantesco labirinto – se encobre com as densas
flores dos medos que atravesso ao me pendurar nos galhos. Meus medos ou seus medos?
Ascenderei
ou Cairei?