sexta-feira, 29 de junho de 2018

TORNADO





O branco nunca se enamorara pelo negro, assim como o sol jamais olhou pra lua entre a infinidades de corpos sagrados brilhantes na malha negra da manta de Deus. Em meus joelhos deitou-se, e com o punhal arranquei suas vísceras róseas banhando-me no mel da vida que corria sobre os rios e coloria de verde os matagais que cruzavam os longos desertos.

Tempestade. Um automóvel derrapando em uma curva acentuada à 150… 200 quilômetros por hora invadiu a calmaria do sublime e arremessou-a contra o muro branco que serpenteava o fora da via. De seus mananciais correram cachoeiras vertiginosas, e dos ventos friccionados explodiam faíscas que eletrocutavam todas as partículas de alegrias e as dividiam em infinitas dores eternas. No fundo imemorial o horror se expandia com a força de uma vingança e do rancor sutil que cobria toda a individualidade recalcada, refúgio e masmorra da barca onde a essência recobria a existência.

Arrancando todas as árvores e as enviando para o céu, a inundação lamacenta invadia todos os resíduos do que antes eram as residências dos justos, e o paraíso dos belos foi engolido pelo coração do tornado sem objetivo. Mentindo para si mesmo, só restava vagar destruindo os alheios Jardins assim como os sopros interiores tinham apagado os castelos de areia de uma infância distante, de um inexistente amor juvenil e de uma poesia que passou como um relâmpago pela consciência e se descarregou em uma árvore queimada pelo pesar e pela rotina.

O desejo era de tornar-se uma leve brisa que transitaria pelas lentidões das várzeas, pelos poros do universo o infinito de únicas possibilidades que conduziriam às velocidades inimagináveis. Tornar-me beleza: O sonho que de modo algum atingiria… O sonho que me levaria a assassinar o desejo. Letras de existências mentirosas, de uma sinfonia assassina secreta que surgiu da decomposição do corpo luminoso em contato com as trevas abismais.

Não pude me salvar, então te matei. Enterrada em milhares de pedaços, restam soterrados seus restos mortais em um cemitério indigente no fundo da consciência. Suas vestes incineradas em um forno em que o pão transmutado fermentava-se são cinzas queimando pelo caminho e seus cabelos serviram como cortinas das janelas da capela onde todos os dias os sinos badalam em memória aos sonhos mutilados que atravessaram o campo minado acreditando que a explosão poderia ser contida. Tragam de volta os bons e velhos dias…




ANOITECE




O rugido da máquina de ar-condicionado meneia as silhuetas das baias vazias cor de marfim com a fúria de um leopardo faminto em busca de qualquer presa comestível na savana de carpetes cinzas e cadeiras móveis. É o anoitecer.

As luzes sempre acesas durante a regência do sol gradativamente aparentam ser ofuscadas pela escuridão de um céu enevoado entrecortado pela sutileza da luz refletida no espelho lunar e pelas cintilantes estrelas vermelhas e amarelas que cruzam com violência os canais da metrópole, farfalhando toda água empoçada pela transitória chuva de veraneio tão comum ao cair da primavera no território da savana.

As gramas que crescem entre os concretos das calçadas são podadas por sentinelas vestidos de azul com lâminas giratórias, e o cheiro da vida e dos sonhos ceifados espalham-se por todo o ar moribundo impregnado do óleo diesel queimado pelos grandes aviões que transportam os pássaros silvestres para suas ocas localizadas nas vilas mais distantes do continente.

Hienas transitam entre os safáris em busca de frutos vulneráveis e pequenas lebres esfarrapadas tentam saltar nas portas dos veículos estelares que a levarão para galáxias negadas aos pequenos roedores sujos que residem nos resíduos dos gigantes que, à noite, apagam-se e dormem silenciosos depois de um longo e cansativo dia de burocracia.

Os bandolins do retorno ao lar tocam uma caótica música que mistura cansaço e alegria, e a corrida ao refúgio distante faz o solo tremer com os batuques de uma marcha marcial desorganizada, como a batida de retirada da companhia militar derrotada em que a individualidade é tanto recuperada no desespero quanto perdida no medo dos caçadores selvagens canibais que empalam suas vítimas e digerem seus miolos em uma sopa xamânica fumegante.

Executivos permanecem nos prédios que arranham o tecido do céu divino. Deus não teve chance contra as inúmeras torres de babel, e perdeu toda a capacidade de se comunicar com o negro rebanho que agora transita perdido sobre ordens desconexas dos anjos engravatados.

O rugido chega aos ouvidos. O medo de olhar para trás e encontrar um espelho é pior do que o medo de olhar para o lado direito e ser encarado pelo lago em que Narciso conheceu seu verdadeiro amor. Pouso a batina negra nas costas que me sustentam e fecho a bíblia negra dos velhos códigos que guia toda a produtividade da selvageria.

O bacamarte que segue em riste enquanto ocorre a aterrissagem da viagem da cabeça do gigante ao solo de concreto podado esta carregado e pronto para tecer um rombo no tecido de qualquer fantasma que transite na masmorra escura da ponte que atravessa o rio em que cadáveres puxam os pés dos desavisados para a eles se juntarem no festim infernal do submundo.

Atravessando as portas transparentes, com medo me apresso e, na rachadura da irregular calçada, todo o meu ser perde o controle e o mundo me parece transitar em ângulos antes nunca percebidos. Baixo se torna cima, esquerda se torna direita, e vejo que de um simples tropeçar nenhuma dessas definições tem sentido por si sem um farol que o ilumine.

O sangue que escorre da ferida recém-nascida jorra como uma cachoeira, e seus caminhos traçam novas veias sobre meu braço, caminhos nunca antes desbravados pelos insetos que me atacam durante o descansar noturno. O sangue cai e pinta um pequeno pedaço de grama não aparada pelos ceifadores, e os olhos esverdeados do mundo pela primeira vez me encararam com empatia. É o anoitecer.

quarta-feira, 6 de junho de 2018


RUÍDOS



Daqui escuto tudo. Do centro do quarto, as grossas paredes negras manchadas de lodo e mofo conservam o abafado frio aconchegante no qual flutuo tal qual um feto boia jogado ao mar vermelho. Dentro desta cápsula viajante do tempo, sinto-me em um não-lugar. O som do silêncio emudece o turbilhão fervilhante das ondas do oceano exterior que teimam em se chocar contra o casco do navio à deriva. 

As ondas estáticas e cinzas sem direção trazem aos ouvidos sombras de um noticiário matinal, uma receita auditiva que mescla o desejo do contato colorido do toque de um arco-íris com o cheiro incolor das lamas saídas de um vulcão obscuro que expeliu todo o gelo capaz de pôr os cabelos do planeta em chamas.

 Atravessando as finas paredes, o canto dos pássaros verdes planando junto ao vento em um céu azul distante se fundem com os gritos inaudíveis dos barqueiros apressados do porto... o odor dos vendedores de peixes anunciando sua viva mercadoria perfumada em frascos, das baratas tintilando entre frutas podres que as crianças esfarrapadas tentam coletar quando não estão pedindo moedas para os apressados camponeses que tentam chegar ao seu destino além-mar cruza com uma velocidade incalculável pelas badaladas dos ponteiros temporais.

 Os barcos barulhentos – Plam! Plam! – dançando e escorregando sob suas negras manchas oleosas têm dificuldade em atravessar a parede de corais que pululam com a vida de milhares de micro-organismos imperceptíveis. 

Sobre Eles, um caranguejo caminha pela teia em busca de pequeninas e apetitosas algas, e o estrondo de seu andar se funde com a cantiga medieval que atravessa os muros transparentes de uma escola juvenil de música onde sanfonas e flautas pintam o som com o violeta-anil rasante de uma melodia ardente e calma. 

A rosa que atraiu a abelha com seu odor harmônico grita um gemido de dor quando pisoteada pela roda de madeira cor de cravo arrastada por cavalos chicoteados que trotam em uma marcha constante – um, dois, um, dois – enquanto um pesado saco machuca a terra com um impacto que o rasga por completo, despejando batatas sobre o marrom do chão de terra batida misturada com o piche mal conservado. 

Murmúrios de menestréis suados cruzando as perigosas florestas áridas ressoam junto aos cheiros de princesas bandidas que vagam sob um céu roxeado cintilante e cheio de vida, e as águas que jorram quando o trem seguindo o vento do norte corta as artérias espalhando toda a terra escurecida e revelando o virgem som rubro do líquido expelido pelos motores da locomotiva. 

Daqui vejo tudo. Abro as janelas e a torrente de cheiros quase me ensurdece. Acima do arco-íris o ouro jorra entre meu corpo e os aromas de frutas prateadas caindo em um chão que nunca chega não são diferentes dos perfumes das harmônicas tocadas no longínquo e sempre presente cais. O silêncio e o Eu – um, dois, um, dois, um milhão – viajamos tanto que já esquecemos quem somos.